Uso da água no semiárido brasileiro

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(Curadoria Agro Insight)

Hoje, trouxemos um capítulo dos pesquisadores, Maria Cléa Brito de Figueirêdo Edilene Pereira Andrade Viviane da Silva Barros Rubens Sonsol Gondim, sobre o recurso água no semiárido brasileiro e a necessidade de buscarmos a sustentabiidade no aproveitamento desse recurso.

Para atender a necessidade de maior produção de alimentos para uma população crescente, em uma condição de maior temperatura do planeta, projeta-se um incremento de 40% na demanda hídrica pela agricultura. Assim, a crise hídrica é apontada pelo Fórum Econômico Mundial (World Economic Forum, 2015) como uma das cinco questões de maior probabilidade e impacto global nos próximos dez anos. Essa crise levará a grandes movimentações populacionais, afetando a geografia de produção agrícola em áreas anteriormente independentes de chuva e ampliando os desafios já enfrentados por perímetros irrigados.

O Brasil apresenta grande disponibilidade hídrica. Porém, todo esse volume é mal distribuído no espaço e no tempo. Devido a essa situação, em diversas regiões do país, especialmente no Semiárido, falta água em determinados períodos do ano. Em algumas partes do Semiárido brasileiro, essa ausência ou dificuldade de acesso à água pode se estender durante todo o ano, sendo necessária a estocagem de água em reservatórios (Agência Nacional de Águas, 2017). Historicamente, a população nessa região enfrenta crises hídricas, com redução parcial ou completa do acesso à água para irrigação, uma vez que é priorizada a oferta para dessedentação e higienização humana e animal em eventos de escassez hídrica.

Este capítulo aborda a questão da escassez hídrica para a agricultura em região semiárida. Inicialmente, o significado do termo “escassez” é discutido, apresentando-se o modelo Aware (Available water remaining) de medição do nível de escassez e uma análise da situação de escassez nas bacias do Semiárido brasileiro. Outra análise é realizada sobre as principais culturas irrigadas nas bacias consideradas com escassez máxima. São então sugeridas tecnologias para aumento da eficiência na irrigação. Por fim, a avaliação da pegada hídrica de produto é introduzida como ferramenta de apoio à gestão eficiente de insumos (agroquímicos, água e energia) em áreas agrícolas, visando ao aumento do desempenho ambiental da produção agropecuária brasileira.

Escassez hídrica: o que é?

A escassez hídrica pode ser definida como o desequilíbrio entre a disponibilidade de água e a sua demanda. Essas variáveis variam de acordo com as condições da região estudada (Steduto et al., 2012; International Organization for Standardization, 2014). O desequilíbrio entre demanda e disponibilidade pode considerar apenas o aspecto quantitativo do volume de água (escassez física), como definido na norma ISO 14046 (International Organization for Stan- dardization, 2014), ou abranger aspectos de qualidade da água (uso degradativo) e acesso da população à água, como definido por Steduto et al. (2012). De acordo com Steduto et al. (2012), a escassez hídrica deve considerar duas dimensões principais:

  • Escassez de disponibilidade, ou seja, a falta de água em quantidade e qualidade aceitável para atender à demanda existente, in- cluindo fluxos
  • Escassez econômica devido à falta de infra- estrutura adequada, independente dos re- cursos hídricos disponíveis, causada por pro- blemas financeiros, técnicos ou por falhas nas instituições responsáveis por garantir água confiável, segura e de forma equitativa a todos os usuários.

Alguns modelos estão disponíveis para cálculo de índices de escassez hídrica em bacias hidrográficas (Castro et al., 2018), sendo cada um baseado no conceito de escassez que abrange ou não aspectos quantitativos, qualitativos e de acesso à água. O cálculo desses índices é fundamental para planejamento de gestão nas bacias, em especial nas que mais passam por períodos de escassez, necessitando de ações urgentes de incentivo ao uso eficiente da água disponível.

Dentre os modelos de escassez hídrica, destaca-se o Aware, proposto por Boulay et al. (2018). Esse modelo foi indicado pelo Programa de Meio Ambiente das Nações Unidas para avalia- ção de escassez hídrica em estudos de pegada de escassez hídrica de produtos.

Principais culturas irrigadas nas bacias com nível máximo de escassez no Semiárido

É preciso avaliar os períodos com maior demanda por irrigação e quais culturas estão sendo irrigadas nessas áreas para uma análise mais profunda da situação.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2016), cerca de 70 culturas foram cultivadas em UHEs do Semiárido com máximo índice de escassez (100), durante o ano todo. Essas culturas estão distribuídas em 29 municípios dos estados do Ceará, Bahia, Pernambuco e Rio Grande do Norte. As principais culturas (Tabela 1), em termos percentu- ais de área plantada, nesses municípios foram: caju (Anacardium occidentale L.) (26,97%), milho (Zea mays L.) (22,53%), feijão (Phaseolus vulgaris L.) (15,33%), banana (Musa spp.) (9,90%), coco-da-baía (Cocos nucifera L) (4,69%), manga (Mangifera indica L) (5,49%), mamona (Ricinus communis L.) (5,15%), mandioca (Manihot esculenta) (5,17%), videira (Vitis vinifera L.) (2,62%) e goiabeira (Psidium guajava L.) (2,15%), totalizando uma área de 195.605 ha, que corresponde a 91% da área total das principais culturas produzidas na região (214.599 ha). Assim, a produção dessas culturas é muito afetada por eventos constantes de escassez hídrica, especialmente se a produção depender de irrigação em determinadas épocas do ano, como ocorre com as culturas perenes do coco, banana, manga, goiaba e uva.

 

Tabela 1. Levantamento de áreas plantadas em hectare (ha) com cultivos temporários e permanentes, localizadas nas bacias hidrográficas com índice de escassez hídrica máxima.

Município Estado Unidade Hidrográfica Estadual (UHE) Banana (cacho) Castanha-

-de-caju

Coco-da-

-baía

Feijão (grão) Goiaba Mamona (baga) Mandioca Manga Milho (grão) Uva Total
América Dourada BA Verde e Jacaré 10 2.100 1.000 5 4.100 7.215
Bom Jesus da Lapa BA Carnaíba de Dentro 8.500 58 5.200 20 48 2.200 6 5.800 21.832
Canudos BA Vaza-Barris 1.417 12 443 15 110 6 121 2.124
Guanambi BA Carnaíba de Dentro 15 10 1.510 3 5 1.540 10 300 2 3.395
Ibititá BA Verde e Jacaré 35 20 162 500 300 15 1.600 2.632
Irecê BA Verde e Jacaré 11 25 70 40 100 15 400 661
Itaguaçu da Bahia BA Verde e Jacaré 38 16 190 90 45 45 540 964
Jeremoabo BA Vaza-Barris 55 50 2.900 12 50 9.215 12.282
João Dourado BA Verde e Jacaré 10 20 130 80 10 600 850
Lapão BA Verde e Jacaré 50 45 85 7.000 150 500 7.830
Malhada BA Carnaíba de Dentro 50 5 700 500 150 500 1.905
Mirangaba BA Salitre 170 1.600 500 700 2.350 5.320
Presidente Dutra BA Verde e Jacaré 11 11 300 300 300 24 3.000 3.946
Sebastião Laranjeiras BA Verde Grande 400 20 500 2 80 10 250 3 1.265
Sento Sé BA Verde e Jacaré 200 30 3.200 1.200 620 2.500 9 7.759
Urandi BA Verde Grande 150 80 1.550 10 50 200 2.040
Aracati CE Baixo Jaguaribe 113 17.824 370 554 34 264 96 566 19.821
Icapuí CE Baixo Jaguaribe 20 14.088 1.024 180 6 60 12 121 15.511
Itaiçaba CE Baixo Jaguaribe 15 855 35 110 50 90 1.155
Quixeré CE Baixo Jaguaribe 1.173 10 597 581 60 230 657 3.308
Russas CE Baixo Jaguaribe 1.185 6.986 192 1.168 328 608 46 1.134 20 11.667
Tabuleiro do Norte CE Baixo Jaguaribe 30 985 17 1.750 3 5 2.230 5.020
Cabrobó PE Terra Nova 15 60 700 10 40 700 1.525
Petrolina PE Pontal 2.160 2.230 2.800 2.140 300 8.190 4.000 4.802 26.622
Salgueiro PE Terra Nova 10 30 500 30 6 500 1.076
Santa Maria da Boa Vista PE GI6 2.800 750 1.540 500 1.300 1.500 280 8.670
Terra Nova PE Terra Nova 8 200 208
Macaíba RN Potengi 15 9.000 220 100 400 12 200 9.947
Touros RN Boqueirão 700 3.000 4.000 150 5 950 50 200 9.055
Total 19.366 52.748 9.177 29.983 4.208 10.073 10.122 10.738 44.074 5.116 195.605
% 9,90 26,97 4,69 15,33 2,15 5,15 5,17 5,49 22,53 2,62 100

Fonte: Adaptado de IBGE (2016).

O estudo sobre agricultura irrigada no Brasil (Agência Nacional de Águas, 2016) apresenta padrões entre métodos de irrigação e culturas, informando que há forte correlação entre o método de inundação e o cultivo de arroz; entre o gotejamento e o café e a fruticultura; entre a aspersão convencional e a cana-de-açúcar; e entre os pivôs centrais e a produção de algo- dão, feijão, milho e soja. Sabe-se que os siste- mas com irrigação por gotejamento são os mais eficientes no uso da água (eficiência cerca de 90%), enquanto a irrigação por superfície é o sistema onde ocorre maiores perdas (eficiência cerca de 60%), estando a irrigação por aspersão com nível intermediário de eficiência (cerca de 75%) (Brouwer et al., 1989). Assim, observa-se que há espaço para melhoria na eficiência do uso da água em grande parte das áreas irrigadas com cana-de-açúcar e grãos localizadas em bacias com índices máximo de escassez hídrica na região semiárida brasileira.

No Atlas de Irrigação, publicado em 2017 (Agên- cia Nacional de Águas, 2017), foram identifi- cadas áreas irrigadas em bacias do Semiárido com condição máxima de escassez hídrica. Ve- rificaram-se 82.839 ha irrigados, entre sistema de inundação pivô central e demais sistemas de irrigação (Tabela 2). Se for comparada a área das demais culturas irrigadas com pivô central e outros sistemas de irrigação com a área das principais culturas produzidas nessas bacias hidrográficas (Tabela 1), verifica-se que 41% das culturas nas bacias com alta escassez são irrigadas. Os principais municípios com produção ir- rigada, em bacia de alta escassez, são Petrolina (22,23%), Santa Maria da Boa Vista (10,98%) e Bom Jesus da Lapa (9,42%) (Tabela 2).

 

Tabela 2. Levantamento de áreas irrigadas, localizadas nas bacias hidrográficas com índice máximo de es- cassez.

 

 

Município

 

 

Estado

 

Arroz inundado (ha)

 

Cana-de-

-açúcar (ha)

Demais culturas em pivôs centrais (ha) Demais culturas e sistemas (ha)  

Total (ha)

 

 

%

Aracati CE 22 2.776 2.798 3,38
Icapuí CE 2.560 2.560 3,09
Itaiçaba CE 250 620 870 1,05
Quixeré CE 90 513 2.495 3.098 3,74
Russas CE 50 95 885 744 1.774 2,14
Tabuleiro do Norte CE 150 773 428 1.351 1,63
Macaíba RN 822 152 975 1,18
Touros RN 1.098 645 1.743 2,10
Cabrobó PE 500 2.874 3.374 4,07
Petrolina PE 816 22.569 23.385 28,23
Salgueiro PE 774 774 0,93
Santa Maria da Boa Vista PE 335 8.760 9.094 10,98
Terra Nova PE 644 644 0,78
América Dourada BA 1.105 1.073 2.178 2,63
Bom Jesus da Lapa BA 9 584 7.215 7.807 9,42
Canudos BA 1.927 1.927 2,33
Guanambi BA 1.053 1.053 1,27
Ibititá BA 301 558 859 1,04
Irecê BA 384 715 1.100 1,33
Itaguaçu da Bahia BA 233 410 644 0,78
Jeremoabo BA 1.018 1.018 1,23
João Dourado BA 1.416 931 2.347 2,83
Lapão BA 804 1.351 2.155 2,60
Malhada BA 1.111 358 1.469 1,77
Presidente Dutra BA 21 1.357 1.378 1,66

Tabela 2. Continuação…

 

 

Município

 

 

Estado

 

Arroz inundado (ha)

 

Cana-de-

-açúcar (ha)

Demais culturas em pivôs centrais (ha) Demais culturas e sistemas (ha)  

Total (ha)

 

 

%

Sebastião Laranjeiras BA 41 50 2.147 2.238 2,70
Sento Sé BA 4 339 2.875 3.219 3,89
Terra Nova BA 0,00
Urandi BA 4 1.003 1.007 1,22
Total 790 1.225 11.410 69.412 82.839 100

Fonte: Agência Nacional de Águas (2017).

 

Tabela 3. Principais culturas irrigadas da sub-bacia hidrográfica do Baixo Jaguaribe, no Ceará, em 2019.

 

Cultura

Aracati (ha) Icapuí (ha) Itaiçaba (ha) Quixeré (ha) Russas (ha) Tabuleiro do Norte (ha) Área colhida (ha)
Banana (cacho) 76 12 6 600 599 162 1.455
Coco-da-baía 407 653 35 275 272 3 1.645
Goiaba 32 6 6 469 513
Limão 2 25 40 90 157
Mamão 130 136 165 36 3 470
Manga 72 9 148 15 1 245
Melancia 500 40 130 2 2 674
Melão 840 540 450 1.830
Total 2.057 1.398 41 1.799 1.433 261 6.989

Fonte: IBGE (2019).

 

Informações detalhadas sobre quais culturas são irrigadas nas bacias hidrográficas do Semi- árido e quais os diferentes sistemas de irrigação utilizados não se encontram nesses estudos (Tabela 1 e 2). Entretanto, esses dados são de fundamental importância para que se faça um gerenciamento adequado dos recursos hídricos nas diferentes bacias hidrográficas.

No Ceará, a Agência de Desenvolvimento do Estado do Ceará (Adece), em parceria com o Instituto Centro de Ensino Tecnológico (Centec), tem realizado periodicamente o levanta- mento de áreas irrigadas por bacia estadual. Na sub-bacia do Baixo Jaguaribe, considerada de máxima escassez hídrica (FC=100), os municípios de Aracati, Quixeré, Icapuí, Itaiçaba, Russas e Tabuleiro do Norte possuem áreas irrigadas (Tabela 3). Observa-se que a produção de fru- tas é uma atividade chave nessa bacia, principalmente banana, nos municípios de Quixeré e Russas, e melão, nos municípios em Aracati, Icapuí e Quixeré.

As culturas listadas na Tabela 3 foram responsáveis em 2019 por uma demanda hídrica na sub-bacia do Baixo Jaguaribe em torno 135.360 (1.000 m3 ano-1) de volume aplicado (Tabela 4). Somente a produção de banana, coco-da-baía e melão de- mandaram 77,68% desse volume (Tabela 3).

A produção de frutas requer segurança hídrica para obter os rendimentos esperados. Entretanto, isso não tem ocorrido na sub-bacia do Baixo Jaguaribe, que se encontra atualmente com apenas 27,2% da sua capacidade de armarzenamento (Funceme, 2021).

Tecnologias para maior eficiência na irrigação

Reconhece-se que o aumento da eficiência no uso da água na irrigação é capaz de exercer importante papel na adaptação em um futuro com maior demanda hídrica para a agricultura. Dessa forma, tecnologias para otimização do uso da água de irrigação devem ser adotadas.

  • Adoção, preferencialmente, da irrigação localizada, por gotejamento ou microaspersão.
  • Desenvolvimento e adoção pelos produtores de aplicativos para dispositivos móveis, visando à disseminação da informação da evapotranspiração de referência em tempo real e controle do tempo de irrigação capaz de suprir as necessidades hídricas dos cultivos.
  • Aplicação de condicionadores de solos, tais como biocarvão e hidrogel, para aumento da retenção hídrica na zona radicular.
  • Aplicação de cobertura morta ou plantio direto na palha para reduzir perdas por evaporação.
  • Aplicação de mulch branco, uma vez que promove retenção hídrica na superfície do solo, reduzindo perdas por evaporação.
  • Utilização de sensores de umidade no solo.

Considerações

Embora a região semiárida sofra de forma geral com eventos de escassez hídrica, algumas bacias hidrográficas estão mais susceptíveis a esse problema que outras. A bacias com máxima escassez estão localizadas nas seguintes Unidades Hidrográficas Estaduais:

i) Baixo Jaguaribe, no Ceará;

ii) Longá, no Piauí;

iii) Pontal, Terra Nova e G16, em Pernambuco,

iv) Boqueirão, no Rio Grande do Norte; e

v) Verde e Jacaré, Carnaíba de Dentro, Salitre e Verde Grande, na Bahia.

Nessas bacias, destaca-se a produção de grãos (milho e feijão) e frutas (caju, coco, banana e uva).

Nesse contexto, ressalta-se a necessidade de avaliação em campo da real demanda hídrica dessas culturas nessas regiões, buscando-se avaliar a eficiência hídrica na irrigação. Nessas áreas, deve-se, também, intensificar a assistência técnica voltada para uso de ferramentas de gestão como a pegada hídrica e de tecnologias para redução do uso da água na irrigação.

BIBLIOGRAFIA E LINS RELACIONADOS

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